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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Olhos pródigos

"Olhos que vêem, que sentem, que amam. Olhos que brilham, reluzem! Meus tão queridos olhos! Por que, por que vocês? Para quê tão alto preço? Olhos, me escutem! Sei que fiz tudo errado. Que não os deveria ter tirado da linha do horizonte. Fui seduzida, de alma e corpo inteiro! É isso o que fui"

Eu sabia, muito pouco, mas sabia. Eu bem imaginava que havia um horizonte paralelo. Ir até lá? Território desconhecido. Não. Muito arriscado. Tratei, então, de relacionar-me com uns de seus moradores, alguns loucos. O que importa, disso tudo, é que eles diziam habitar o horizonte paralelo. Eu queria um pouco mais de informação... só um pouco de informação. Que tem de mal nisso? Era o que eu pensava. Mas eu tinha de trilhar o velho horizonte... como fazem os sãos. Almas jovens enganam-se muito. Pensam que podem, mas não podem nada! AAAAH, se alguem me tivesse alertado! Ao menos dito! Mas nunca me quiseram bem. Por que é que me diriam que mais felizes são aqueles que não se metem em território desconhecido?
Diziam-me, aos elogios, que eu era inteligente. Passou-se o tempo. E passei a enxergar-me como alguém inteligente. Se há veneno para auto-destruição, alerto, este há de ser o mais letal. Os sãos não me queriam bem... evitavam-me. Faziam vista grossa às minhas dores! Por vezes, eram eles quem as causavam. Só para assistirem à minha degradação. Lenta e gradual, é claro. Para que o espetáculo durasse bastante! Ah, como isso doía! Eu me via dotada de algo especial, raro, diferente. Se uma parte de você acredita que não sou uma perdida por completo, que algo do que digo ainda faz certo sentido, preste atenção: eles me odiavam, eles me queriam destruída! Sim, é isso mesmo. Estou sendo orgulhosa, prepotente e egocêntrica. Mas o que direi em próximas linhas ainda há de ser útil... acreditem em mim. Tenho algo que eles querem muito, mas que me recuso a lhes dar.
Deve estar pensando que sou imbecil, que reclamo aos cotovelos das tantas situações de humilhação às quais me sujeitei sendo que há um meio de acabar com isso tudo. Antes de dar a você minha justificativa, faço-lhe um convite. Na verdade, você não tem muita escolha. É o seguinte: não escrevo a qualquer um, não; se tiver se identificado como mais um dos sãos, por obséquio, retire-se! Espaço meu não é lugar de maiorias. Se você se sentir, de algum modo, identificado comigo, continue a leitura. Mas não pense que para estar comigo, acompanhar-me em minhas mais profundas reflexões, basta que haja uma identificação. No decorrer deste discurso, aviso com antecedência, selecionarei quem deverá continuar me acompanhando.
Prometo não me estender muito até chegar na justificativa, mas, sabe, minha orelha esquerda parece queimar! Embora impossível, por questões lógicas, posso jurar que ouço agora um bando de babacas falando mal de mim. Dizendo que sou uma idiota, que não posso evitar sua presença aqui. Então respondo agora, a vocês, miseráveis tolos que continuam a me seguir: continuem! Podem ficar aqui, podem ouvir tudo o que direi! Garanto que logo irão enojar-se e que, por conta própria, sumirão daqui. Mas, se isso não ocorrer, não me preocupo. Vocês são tolos, não são capazes o suficiente para me acompanhar.
Agora que estamos em menor número, sinto-me mais confortável para dar minha justificativa. Desculpem-me pela tamanha enrolação. A resposta: não dou a eles o que querem porque sempre quis estar com eles, e eles pisavam em mim! Quando se depararam com a ideia de que precisavam daquilo que eu tinha, eu já havia me cansado deles. Resolvi fugir, não entregar o ouro! Sei que fazer isso é basicamente o mesmo que  fugir de sua casa carregando um baú antigo e cheio de cartas velhas, sem valor material algum, mas muito importante para você, e não ter tempo para fechar as portas. Sei que isso significa permitir que entrem e baguncem tudo. Eu sei.
Vocês devem estar agora tentando entender o que significa aquele período, aquele período escrito entre aspas, desconexo e supostamente alheio à nossa conversa. Pois podem considerá-lo desconexo, mas parem de julgá-lo alheio à nossa conversa! A presença dele, na posição mais nobre desse texto, faz o maior sentido. Tentarei ser o mais paciente e clara o possível. "Quando uma pessoa enlouquece, enlouquece por completo". Certo? Não. Mas não precisa assustar-se ou sentir-se burro, até eu acreditei que essa máxima fosse verdadeira. Pode até ser que seja. Mas, se for verdadeira, não é válida para todos. Os olhos, eu e o mundo paralelo temos mais coisas a ver que eu poderia imaginar dois ou três anos atrás. Temos mais coisas a ver que você, a uma hora dessas, pode estar imaginando. Antes de continuar, peço que compreenda que, por questões estilísticas, direi a relação entre mim, mundo paralelo e os olhos no próximo parágrafo. Caso contrário, este ficará demasiadamente extenso.
Antes de começar a explicar, uma constatação. Percebo muito olhares perplexos, confusos. Sem complicações. Sejamos objetivos! Os que não estiverem mais me entendendo, retirem-se! Vejo que sobraram alguns. Pois vamos adiante!.Metaforicamente, os olhos são aquele filho resignado, o filho que não faz nada sem o consentimento dos pais. Parece lindo, não?! Mas não é. Tenho uma teoria, que embora não venha ao caso detalhá-la, cuja máxima é "Todo bom filho um dia revolta-se". Ah, olhos queridos! Como os quero bem... Tão bem quanto quer um pai a seu filho. Não é porque meu filho decidiu ser pródigo que eu, o pai, deixei de amá-lo. Mas esse amor, que faz crer na possibilidade de resgatá-lo vivo, e bem, sabe, inconscientemente, que tudo a ser feito será em vão. E desgastante. O pai que muito tenta salvar o filho morre aos poucos. Passa a definhar em território desconhecido. Pego a maioria de vocês sentindo compaixão desse pai. Não tenham! O filho nada mais é que uma projeção que, embora um tanto diferente, compartilha os mesmos pontos que a do pai. O filho é aquilo que o pai muito pensou e que, por alguma razão, guardou dentro de si. É que os pais são mais covardes e os filhos mais destemidos. Observe: quando digo "destemidos", refiro-me ao que tornam aqueles seres medíocres e resignados depois da revolta. Vamos ao próximo parágrafo.
Peço-lhes uma venda. Você tem? Ah, obrigada! É preferível continuar assim o discurso. É que temo que... Bom, deixem para lá! Não fui clara... Quero dizer que compreendo, do fundo do coração, todos vocês. Esforçaram-se... tentaram me entender. Mas, agora, não somente sei como percebi que muitos, ou todos, não se julgam capazes de me entender. Não, não se sintam mal! Estou ouvindo prantos! Por favor, não chorem. A partir de agora, todos os que aqui estão são merecedores do meu respeito. Mas é preciso prosseguir em menor número... eu preciso de alguém capaz de chegar no mais fundo de meu âmago. Por isso não julgo nenhum de vocês... Porque eu sei que, para que haja compreensão, somente alguém que trilhou os caminhos que trilhei e que chegou aonde cheguei pode me entender. Adeus, amigos! Vocês são queridos. Já vendada, fica inviável continuar caminhando. Peço que se sentem em algum lugar aqui por perto e que, enquanto busco palavras para expressar o que tenho a dizer, contemplem, por vocês e por mim, a beleza desta noite.
Acho que estamos nos aproximando do fim, do momento que me requer maior coragem. Eu, o pai persistente que tenta salvar o filho pródigo a todo e qualquer custo, que tenta tirá-lo do território desconhecido, devo assumir. Assumir o que se passa. Admitir minha covardia, a covardia de pai. Quando jovem, almejei muito mudar-me para o mundo paralelo, mas tive medo. Perdi-me, então, ao escolher habitar o meio-termo. A perdição e o sofrimento de meu filho, de meus amados olhos, não são culpa deles. A culpa é minha. Tivesse eu aceitado viver no mundo dos sãos e entregue a eles o que queriam tudo estaria bem. Dizer bem é exagero. Mas, tudo estaria melhor. Não fui ao mundo paralelo, mas fui curiosa, busquei saber dele mais do que deveria. E o pior? Mesmo sabendo um pouco, continuou este sendo nada mais que desconhecido. Meus olhos, meu filho querido, um dia rebelaram-se. Decidiram alimentar a interrogação que vivia dentro de mim! Decidiram conhecer esse mundo. Tiveram a ousadia que eu não tive. Hoje não vivemos bem, não há sintonia entre nós. Eles costumam ir para direções opostas às minhas. Isso me incomoda, me faz mal. Isso me definha.
Mas, para tudo, ainda que doa, há uma saída. Para que doesse um pouco menos, fiz o convite... sei que foi egoísmo meu ter selecionado alguém como companhia. Depois de padecer gradativamente, sinto que em tempo não tão longo estarei morta. Porei um fim a essa angústia, livrarei minha alma e meu filho. Ah, olhos queridos! Não se preocupem. Vocês ficarão bem. O erro, que é mais meu do que seu, será corrigido. Mas, como você sabe, é muito triste aposentar a vida sozinho. Eu queria alguém que compreendesse o significado de meu fim. A venda, caso não tenham entendido, escolhi usar para evitar uma possível dor. No momento em que despedi-me das últimas pessoas, estava insegura. Não sabia se haveria alguém, ali, que me entendesse por completo. Preferi não ver se fiquei só ou se havia alguém comigo. Mas, agora é tempo de parar com adiações e encarar o fim da vida do jeito que tem que ser. É hora de soltar a venda. Olhei para os lados. Ninguém. Meus olhos, naquele instante, uniram-se a mim. Meu filho sofria tanto quanto eu! Nós chorávamos juntos. Juntos! Então, olhando para o alto, encontramos alento. A morte não seria tão dura, não enquanto a Lua estivesse a iluminar a nossa despedida, enquanto nos fizesse companhia!

Giovana da Rocha